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domingo, 5 de abril de 2009

Amo Cães e Não Nego

Sou uma pessoa que cresceu tendo uma cachorra como companheira (Chispita, uma vira latinha com cara de pequinês, morreu aos 18 anos. De velhice, enquanto dormia).

Atualmente, cuido de duas que foram resgatadas da rua (longa história, outro dia eu conto), além de um gato adotado de uma voluntária do IVVA (ONG de Campinas que cuida de animais de rua). Ao mesmo tempo, acabei me envolvendo com o resgate de animais de rua junto com outra voluntária da mesma ONG.

Pois bem… Tudo isso pra começar a comentar um slogan vegetariano no qual eu vejo sentido:

“Animais: se você ama uns, por que come outros?”

Coloquei um adesivo desses no meu carro. E confesso que já vi pessoas literalmente rolando de rir depois de lerem (se bem que, como diria Victor Hugo, rir é bom mas rir de tudo é desespero).

Normalmente essa frase vem acompanhada da foto ou ilustração de um cão ou gato. Como slogan, ela cumpre seu papel. Slogans não são textos filosóficos ou dissertações; são frases de efeito, incisivas, que em poucas palavras têm que passar uma mensagem e, principalmente, gerar interesse por um determinado assunto.

Mas, como slogan, ele pula várias etapas de raciocínio e estampa logo a conclusão. Só que muitas pessoas jamais pensaram sobre essas etapas. Assim, a mensagem corre o risco de chegar truncada.

Vamos imaginar, assim, a Dona Maria (ela não existe mas é uma reunião de diversos casos que eu acompanhei; eu só gosto de contar historinhas, ando com essa mania…).

Dona Maria ficou - literalmente - com dó de um cachorro novinho que passava sempre em frente à sua casa e um belo dia, num ato até um pouco impensado, abriu o portão, deu comida, água e deixou esse cachorro entrar. Pronto, Dona Maria agora tem um cachorro. Ela brinca com ele, ele a recebe abanando o rabo, é uma companhia e, sim, ela gosta dele.

O vizinho, Seo João, tem um cachorro também. Todo dia às 6:30h o Seo João caminha pelo bairro com o cachorro. Acontece que o cachorro da Dona Maria late às 6:30h da manhã, pelo portão, pro cachorro do Seo João, que responde também latindo. Seo João não liga pra isso (ele já está acordado e caminhando). Dona Maria está quase louca. Nenhum dos dois pensou em socializar os animais (ou tem tempo, paciência, conhece a possibilidade, ou qualquer coisa assim).

Bom, a verdade é que cachorros latem, em especial cachorros dentro do próprio território. Mas a questão aqui não é essa. A questão é: Dona Maria não agüenta mais a barulheira logo cedo. Mas isso não é culpa do cachorro dela, “que está quieto dentro de casa”. É, logicamente, culpa do cachorro do vizinho (e do vizinho, que insiste em fazer aquele caminho). De qualquer maneira, a cada dia que passa, os latidos do próprio cachorro a incomodam cada vez mais.

Resultado: se você perguntar pra dona Maria se ela gosta de cachorro, ela vai responder que sim. Afinal, ela tem um, cuida dele, se relaciona com ele. Abstratamente, cachorros são animais bonitos, macios, aconchegantes, fiéis e companheiros. E ela tem uma boa referência também, de um cachorro que convive com ela (ele late, ele rói, cava, faz xixi e cocô como qualquer outro cachorro; mas ele é dela). Mas pergunte o que ela acha do cachorro do Seo João…

“Ah, é um cachorro mal criado, barulhento, o cheiro da casa vizinha é insuportável, atrai moscas, quando o Seo João sai o cachorro chora”. Ih, detesta “aquele” cachorro. Ou “aqueles”, se o infeliz do vizinho tiver mais de um, for protetor de animais ou até mesmo um canil de uma entidade de proteção… E, sim, pessoas que tem cães às vezes envenenam os cães dos vizinhos. Mesmo “gostando de cachorros”.

Outro dia, Dona Maria viu um filhotinho abandonado, que era pura sarna, tentando passar pela grade do portão. Foi um dia estressante, imagina se o cachorro dela pega! Não teve jeito, ela espantou o filhotinho a vassouradas e pediu pro seo Mané do bar “dar um jeito nele”. Ele afoga esses cachorrinhos sarnentos, assim eles não sofrem mais. Ah, existe remédio contra sarna, mas dá muito trabalho. E quem, afinal, pode perder tempo com essa infinidade de filhotes sarnentos pelas ruas?

Falando em filhotes, Dona Maria tem pensado em comprar um. Descobriu que duas ruas atrás da sua um vizinho tem um lindo casal de bassets e de seis em seis meses vende as ninhadas. Bassets são pequenos, talvez ela consiga ter os dois. Afinal, ela gosta de cachorros.

E compra potes azul turquesa, coleiras de couro, biscoitinhos, ração que diminui o odor das fezes e a última palavra em casinhas e brinquedinhos. E desconta todo seu instinto maternal não concretizado nesse animal.

Dona Maria, aliás, diz que adora cachorros. Mas odeia gatos. Que bichos traiçoeiros e de mau agouro. Gatos pretos, então… Vá de retro, Satanás!

Eu acabo me perguntando: isso que Dona Maria tem por seu cachorro e que, por extensão, ela acredita que se aplique ao gênero “cachorros”, é algum tipo de amor? Honestamente, parece mais uma conveniência (quem não gosta de ter alguma coisa em troca de quem quer que seja, mesmo de um animal?). Ou o tipo de “amor” que se devote a um brinquedo que na primeira oportunidade é deixado em segundo plano. E que, de fato, não tem nada a ver com a espécie e muito menos com animais de uma maneira geral.

Mesmo que eu enxergue amor na relação dessa senhora com seu animal, a verdade é que esse amor seria restrito àquele indivíduo.

Mas, imagine agora Dona Maria, inserida nessa realidade, sendo apresentada ao slogan em questão… Vai surtir algum efeito? Talvez ela julgue vegetarianos como loucos que “distorcem as coisas” e assunmirá uma atitude defesiva, até um pouco agressiva. Afinal, na cabeça dela, ela ama seu cachorro, cachorros e conseqüentemente animais. E tem a prova disso: aquele cachorro que vive no seu quintal. E ser ou não vegetariana não muda isso. Cachorros não são galinhas, bois, porcos, peixes…

E pra maioria das pessoas é muito, muito difícil, reconhecer nesses animais com os quais mal têm contato (ou não têm contato algum) a mesma essência que existe em seus cachorros.

Eu consigo enxergar a lógica toda por detrás desse slogan e dou razão ao raciocínio. Mas isso não aconteceu do dia pra noite, porque tive a difícil (sim, difícil, pois tive que renunciar a um pensamento padrão e já condicionado) de que animais se definem por seus usos. Porque desde pequenos, quando aprendemos sobre animais, eles são explicadas por sua serventia: galinhas botam ovos, vacas “dão” leite, bois fornecem carne e couro, elefantes nos divertem nos circos e “dão” marfim e daí por diante. Até cachorros: “servem” pra fazer companhia, pra guardar a casa.

E como amar algo que é avaliado, antes de tudo, por sua serventia?

Nada contra o slogan, muito pelo contrário. Ele apresenta às pessoas uma realidade diferente e que pode levar muitas a estenderem esse sentimento de amor de uma forma mais legítima a outros animais. Inclusive pessoas que inegavelmente se dedicam a cães e gatos, especialmente os abandonados. Se não amor, no mínimo tolerância. É um começo.

Já a Dona Maria, mal sabe o quanto ela é mestre na arte de diferenciar cachorros, cachorro do vizinho, o cachorro dela e animais (notou a distância?). E que, infelizmente, pouco sabe sobre amor incondicional. E, provavelmente, pouco sabe sobre animais.

Renata Octaviani Martins
VegVida - www.vegvida.com.br

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